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Fim dos Anos 80 do século passado… Eu era professora já fazia 10 anos, mas quando fui para aquela escola tinha a impressão de ser tratada como uma mocinha tola cheia de sonhos na cabeça a acreditar que as crianças tinham ideias próprias e peculiares sobre a escrita. Havia lido todas as publicações recentes sobre alfabetização da secretaria de educação do estado de São Paulo, e tudo que se dizia sobre o processo de aprendizagem das crianças quando se alfabetizam fez muito sentido para mim. Mas algumas colegas da escola, já veteranas, não leram e não gostaram do que não leram. Diziam que as coisas não eram bem assim.
Aquele foi um ano difícil, e na primeira oportunidade, claro, fui para outra escola, onde em pouco tempo ganhei o respeito da equipe depois de ter minha sala de aula filmada pela TV Cultura, em busca das raras professoras alfabetizadoras que se empenhavam em organizar o trabalho pedagógico a partir da convicção de que as crianças têm, de fato, ideias peculiares sobre a escrita.
Bem, tudo isso para dizer como conheci as ideias de Emilia Ferreiro há mais de 40 anos. Elas me chegaram em textos de segunda mão, que diziam dizer o que Emilia teria dito.
Na escola nova, como fui reconhecida publicamente como a professora que era “do jeito que tinha de ser”, tive alguns benefícios. Fui indicada para fazer um curso com Telma Weisz, na Secretaria de Educação, e aí pude conhecer as ideias de Emilia a partir não mais de textos de segunda mão, mas da escrita dela própria. No curso, chamado “Por uma alfabetização sem fracasso”, era preciso estudar a Psicogênese da Língua Escrita, livro que documentou sua pesquisa com crianças e concluiu que elas têm ideias bastante peculiares sobre a escrita.
O encantamento com o conteúdo do livro foi o que me instigou a enfrentar uma leitura difícil para mim naquela época. Fiquei tão impressionada com tudo que li, e com as discussões que aconteciam a partir do livro, que repeti outras duas vezes o curso nos anos posteriores, o que nem era permitido.
Eu precisava aprender, e fui aprendendo e assim estou até hoje: buscando compreender cada vez mais como as crianças aprendem e, então, como podemos ensiná-las.
Depois conheci Emilia pessoalmente, quando ela inventou, ainda no século passado, um projeto belíssimo chamado Red Latinoamericana de Alfabetización (relançada agora em 2023) e eu fui convidada, na época, a coordenar o núcleo do estado de São Paulo.
Que mulher cheia de ideias geniais era ela!
Pude ver de perto o lado atento e exigente da pesquisadora, assim como o lado humano e divertido da mulher carismática, sempre de trança, que apreciava tequila e pimenta na comida.
Gosto muito de ouvir o que falam os autores, sempre que isso é possível, não somente ler o que eles escrevem. Fico sempre pensando que há mais de humano e vivo no que dizem quando conversam. Foi assim com Paulo Freire também… Aprendi muito com o que o escutei dizer em suas longas prosas. Aprendi também com Emilia ouvindo o que dizia nas reuniões, nos bastidores, nas grandes mesas de restaurantes, ao caminhar devagar até os lugares, ao se surpreender com algo novo que recebia para olhar mais de perto.
Que sorte ter vivido no mesmo tempo que o dela, poder aprender com ela, ser a educadora que hoje sou muito por causa dela.
Essa mulher latino-americana valorosa praticou a rebeldia de romper barreiras, de transgredir a ordem das coisas estabelecidas, de produzir ciência séria, de criar um novo paradigma de aprendizagem, de militar em favor das crianças. Como não amar?!
Emilia nos fez saber – talvez acima de tudo – que as crianças podem nos ensinar o que desconhecemos sobre elas. Por isso precisamos oferecer a elas a nossa escuta, o nosso olhar curioso, as nossas perguntas amorosas, o nosso deslumbramento com o que nos dizem, o nosso apoio solidário, as nossas propostas ajustadas ao que elas podem e precisam aprender.
Agora Emilia se foi e ficamos nós com o compromisso de movimentar suas ideias em favor da alfabetização de todos os estudantes. A nós cabe a tarefa formativa de compartilhar com as jovens professoras um conhecimento da maior importância para a docência!
Texto escrito para o Tributo à Emilia Ferreiro
que aconteceu na Semana de Educação de São Bernardo do Campo – 2023
Tributo à Emilia Ferreiro