Tags

,


Slide63

Campinas, 14 de dezembro de 2015

Cara e querida Rosaura!

Parabéns! Finalizaste mais esse desafio!

Para ti, realizar a dissertação de mestrado em forma de carta e construir uma investigação sui generis, marcada por idas e vindas, intensos e contundentes diálogos com os sujeitos participantes de tua pesquisa – verdadeiros militantes na profissão – e ser muito bem avaliada, tanto por eles mesmos como pelos membros da banca, inclusive com um participante de outro país, não foi o suficiente para satisfazer teu desejo de querer mais. Ou seria satisfazer teus desejos e querer mais e mais? Talvez seja isso… bem cara de Rosaura, não?!

Enveredaste por outras paragens, percorreste outros mundos, lançaste a ti mesma ao abismo e… e de posse de mais uma pergunta instigante, um dos muitos frutos de tuas muitas inquietações, desafiaste a ti mesma para mais uma investigação!

O que começou como lugar calmo e tranquilo, porque dominado pela cotidianidade, visto que muito do teu tempo de trabalho é junto ao computador e ligada na internet, tu transformaste em um labirinto de questões, em que todos os que nele entravam participavam da aventura de ali estar e, contigo, dele sair para encontrar… encontrar o desejo de escrever e ser mais!!

Teu exercício de pesquisa, junto a esses tantos sujeitos, inclusive alguns que aqui estão, gerou um dos produtos mais consistentes e penetrantes que existe em nossa sociedade: a expressão escrita, em múltiplas formas e com as marcas de quem se propôs a gestar, parir, amparar e cuidar do gesto de escrever – não só em respostas às tuas provocações, mas a perguntas não feitas e a perguntas feitas em parceria e comunhão, como no caso das des|amorosas.

E nisso tudo, neste exercício cotidiano de pensar tua tese e tua investigação, geraste também a reflexão desse modo de produzir narrativa na pesquisa em educação. Além da invenção da “pesquisa da pesquisa na pesquisa”, produziste também a pesquisa narrativa em três dimensões – fruto da parceria dialógica exercitada com Vanessa Simas e comigo.

Aí, outra marca singular do teu processo reflexivo! Incluir em gênero, número e grau todos os participantes, todos os que participam desse teu diálogo interior, constituído de múltiplas vozes em múltiplos contextos, mas que residem inclusivamente e exclusivamente em tua ágora interior.

É dessa interioridade, generosa e sagaz, que quero dizer mais para vocês aqui presentes nesta defesa de doutorado…

Esse jeito da Rosaura levar as coisas, não só com paixão como também com muita razão, manifesta-se a partir de um carinho e um cuidado que eu muitas vezes me perguntava, quando era comigo, se merecia tamanha consideração… E convivendo quase semanalmente com ela, pude perceber e sentir o quanto ela realiza essa presença com tantas pessoas, próximas fisicamente ou mesmo distantes, visto que todas são íntimas de sua presença em palavras e escritas!!

Rosaura se faz presente, mais do que nunca, nas escritas que ela compartilha conosco e nas escritas que ela, singela e argutamente, dirige a cada um de nós. Eu tenho esse privilégio, como muitos de vocês também têm!

Tanto no PC quanto no laptop, seja em um ou outro pendrive e mesmo em meus dois hardisks, há, sim, arquivos com o nome de Rosaura, repletos de textos dela, textos que ela enviou, sequências de e-mails, cartas e mais cartas. Inúmeras vezes a leitura destes textos movimentam minha consciência, mexem com meus sentimentos, produzem novos lampejos e acalentam meus pensamentos.

Rosaura é uma pessoa muito querida para mim!

E agora, quando deveria ficar alegre por um momento como este, me peguei em sentimento querendo adiá-lo para que essa parceria não terminasse com a finalização da tese de doutorado e sua defesa e… eis que então sou tomado pelo assombro e por sua presença. Disse a mim mesmo: “A danada já havia pensado nisso, ao sugerir criar o curso de extensão para ministrarmos juntos e, como ele não terminou, teremos mais alguns sábados em 2016 para pensar em como continuar a parceria, sendo ela, agora, doutora… Que boa ideia!!!”.

Ao ser tomado por essa feliz constatação, voltei à felicidade que havia me tomado ao findar a leitura da narrativa da tese. Felicidade por ter sido participante próximo de todas as decisões que geraram os arranjos em conteúdo e forma da narrativa investigativa que cada participante da banca comentou – inclusive um deles de outro país, novamente agora, como não podia deixar de ser… – e que evidenciam o cuidadoso e afetuoso trabalho com as palavras que Rosaura, como pesquisadora-narradora-autora, procurou realizar em constante diálogo com os colaboradores de sua investigação.

Por tudo isso, e por mais algumas coisas, que com certeza acontecerão, findo esta carta rememorando um poema, não do querido Manoel de Barros, como sempre faço, mas de um poeta português que também me é caro: Fernando Pessoa, em um dos seus heterônomos, Álvaro de Campos. Chama-se Adiamento.

Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã…
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não… 
Não, hoje nada; hoje não posso. 
A persistência confusa da minha subjetividade objetiva, 
O sono da minha vida real, intercalado, 
O cansaço antecipado e infinito, 
Um cansaço de mundos para apanhar um elétrico… 
Esta espécie de alma… 
Só depois de amanhã… 
Hoje quero preparar-me, 
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte… 
Ele é que é decisivo. 
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos… 
Amanhã é o dia dos planos. 
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo; 
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã… 
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro…
Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo. 
Só depois de amanhã… 
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana. 
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância… 
Depois de amanhã serei outro, 
A minha vida triunfar-se-á, 
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático 
Serão convocadas por um edital… 
Mas por um edital de amanhã… 
Hoje quero dormir, redigirei amanhã… 
Por hoje, qual é o espetáculo que me repetiria a infância? 
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã, 
Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo… 
Antes, não… 
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei. Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser. 
Só depois de amanhã… 
Tenho sono como o frio de um cão vadio. 
Tenho muito sono. 
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã… 
Sim, talvez só depois de amanhã…
O porvir…
Sim, o porvir…
                                Álvaro de Campos – 14-04-1928

Com afeto, carinho e muita admiração, Rosaura.

           Forte abraço,
Guilherme

Carta lida por Guilherme do Val Toledo Prado no encerramento da defesa da tese “A experiência da escrita no espaço virtual: a voz, a vez, uma conquista talvez”. Um momento inesquecível!

Imagens: Defesa da Tese – Rosaura Soligo